quarta-feira, 17 de junho de 2009

a gaivota (e as lições morais engatilhadas)



Anda aqui no largo, há dias, uma gaivota desvairada com um balão que ficou preso num fio eléctrico no beco dos Agulheiros. Desde manhã cedo (deve ser a primeira coisa que lhe vem à sua ideia de gaivota) aí vem ela em grasnidos roucos de medo ou de raiva a girar á volta do malfadado balão. Afasta-se um pouco, dá umas voltas naqueles berros tremendos, e cai sobre o inimigo fatal, desviando-se só a curta distância (acho que ainda não chegou realmente a vias de facto). Já toda a gente deu por isso. Aquilo incomoda, interpela-nos. Há nesta canseira qualquer coisa de insano, de lastimável, de irrisória, que nos deixa divididos entre a fúria, a pena, a impotência. Sabemos que não podemos chamar à razão a gaivota (que tem outras razões, que serve outros fins e senhores, que não os nossos) e nunca aos seus olhos de gaivota aquele balão deixará de ser o que quer que nela desperta tal medo ou tal raiva. E nem sequer está na nossa mão livrá-la de tal enguiço: o balão está inacessível aos nossos esforços de o soltar dali. Poderíamos rir-nos daquela insânia inglória - não há no estúpido, no ridículo, no irrisório balão nada que evoque o leviatã. a moby dick que daria grandeza e pathos à porfia da gaivota. Mas não nos deixa rir aquela persistência, aquela teima, como uma missão pessoal e imperiosa. Nem sequer o consolo de saber que seria esse o destino das gaivotas - não, há aqui qualquer coisa de único, de uma escolha, de um destino. No primeiro dia, por alguns momentos mais uma ou duas gaivotas acorreram, chamadas pelos gritos desesperados. Houve mais uns grasnidos, mais umas voltas à volta do balão, mas logo se desinteressaram e foram á sua vida de gaivotas que nenhum destino marcou com tal ferro. E aí anda ela, sísifo sem glória e sem descanso.
E nós habituados que fomos a ver um mestre na chamada natureza lá deixamos aparecer a cabecinha à espreita da moral engatilhada. É antiga esta mania de querer ver lições no que não tem nenhuma lição a dar. E nisto não há caeiro que nos valha. Nem sequer o bom senso a dzier-nos que nunca as parábolas, nunca os conselhos, nunca a experiência dos outros ensinou o que quer que seja a ninguém. Que só o que nos passa pela pele nos serve, que o que vivemos, o que sentimos, o que aprendemos assenta semprer na cartilha do (como diz a outra) nunca nada de ninguém.
Mas a gaivota, e tem que ser, acoerda em mim o mesmo sentimento de impotência, de tristeza, também de incontida fúria, diante do sofrimento que vejo como inútil, como irrisório. Sei que ele vem dos fundos de outros sofrimentos antigos e irredimíveis, sei que são agora apenas sombras a impedir, a negar a vida que se tem (enquanto não se re-viver a vida que se não teve), sei que é irrisório o poder de tais sombras que um outro olhar prontamente dissiparia. Mas é isso mesmo: "outro olhar" (como o olhar de uma gaivota, que não é forçosamente o nosso). Mas "assistir" a tal sofrimento é também doloroso. E sobretudo porque no fundo pensamos que não nos resta mais do que "assistir". Porque a meada de tal sofrimento (de tais medos, de tais raivas) só desenredada pelos próprios pode servir de libertação. Dizemos: mas tu não vês que... E não, não vê, porque o que pode ver não é o que aí está (e que nós vemos), mas o que aí esteve (e já não está, mas estão as marcas) e nós não vemos. E (lá vem a gaivota...) também não sabemos o que é, que pode levantar tais medos, tais raivas, ou tais mistérios, sei lá.

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