segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

rituais de saudação



ao começar o dia o joão é uma revoada de alegria e entusiasmo pela casa toda. Vem ter comigo à cama, deita-se em cima de mim, aos beijinhos e abraços. Hoje deu-me uma turrinha na testa e disse: "vamos fazer como dantes". "Como dantes? Como era?" "Não sabes? Dávamos uma turrinha e depois esfregávamos os narizes e depois... O que era mais?" "Ah", disse eu "e tocava-te no umbigo e puxava-te a orelha esquerda e depois a direita" "E mais?" "Não me lembro de mais nada."
E ficamos ali na risota a esfregar os narizes e a puxar as orelhas um ao outro.

um édipo ou (talvez) não



no sábado o joão deu-me um desenho que tinha feito. "És tu" (a figura maior) "e a mãe e eu ".
Os psis de dedo no gatilho haveriam de saltar sobre a ocasião: aqui está uma curiosa ilustração do Édipo. O filho e mãe numa bolha protegida e protectora, que os isola do mundo. E o pai, figura enorme e poderosa, mas à parte. Quem sabe? Haverá alguma coisa de verdade nisto: a relação tão intensa e emocional dele com a mãe, rica em mimos, amor, consolo, e também com conflitos que depressa atingem picos emotivos que raramente acontecem comigo. Há realmente aí um mundo especial, embora não me pareça que seja muito diferente do que se passa com as crianças nesta idade, pelo menos nos casos em que os pais não reprimem, ou abafam ou delimitam essas expansões de afecto.
Mas, antes que os tais psis comecem a salivar demasiado: o desenho foi feito numa festinha em casa da Mia, uma coleguinha da sala do João, meia francesa. A mãe dela, Morgane, tinha organizado um pequeno atelier com os meninos em que eles deviam fazer desenhos para depois ilustrarem uma história. O joão fez alguns desenhos e também este. E até eu era capaz de me embalar nas tais "interpretações" se não tivesse visto ele oferecê-lo ao Tiago: "Toma lá, este és tu!". O Tiago não quis o desenho e ele então deu-mo a mim. E só mais tarde quando lhe perguntei o que era é que ele me deu a tal explicação. Se bem que...


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

PORIBDO TRNU


Gosto de me sentar na pequena poltrona do quarto do joão. ele não conhecia a palavra poltrona e a princípio chamava-lhe trono. e assim ficou, e agora é assim que lhe chamamos.
magnânimo, o joão disse-me que podia sentar-me lá para tomar o pequeno-almoço ou para tomar o chá, quando eu quisesse. aos fins de semana é que tinha de lhe pedir autorização. mas pelos vistos este direito ao trono não é indiscutível.
no sábado, o joão teve uma discussão com a cereja, fez uma birra e chamou-lhe nomes. Disse-lhe tu não prestas para nada e ooutras coisas do género, coisas que aprende com os outros meninos na escola. Quando depois me veio pedir para ver um filme (um dvd, que vê no computador, porque não temos televisão) eu disse-lhe que não, que estava de castigo por ter chamado nomes à mãe. Ele ficou furioso. Eu não liguei e fui para o meu quarto. Daí a pouco abre a porta e num tom vingativo diz-me. não posso ver filmes? Então não há trono para ninguém. E foi-se.
Mas não ficou por aqui. Colou na porta do quarto dele um aviso, numa letra esforçada, com desenho e tudo, a proibição decretada: PORIBDO TRNU, com um X por cima do desenho da poltrona, para o caso de eu não perceber à primeira.
Claro que depois lhe passou a birra e passamos o dia a brincar ao monstro das
cócegas e a fazer castelos e fortes com legos e playmobil. e foi ele que de papel na mão me veio dizer que já tinha tirado o aviso e que já me podia sentar no trono, que tinha tirado as coisas todas que lá tinha posto.
Mas depois do jantar, numa conversa calma, com ele a ouvir o que eu tinha para lhe dizer, expliquei-lhe que o castigo de um dia sem filmes, passaria para dois dias sem filmes se aquilo voltasse a acontecer. E que depois seriam três dias, quatro dias e assim por diante. Todos os filmes. Mesmo os que a tia lurdes anda a juntar para lhe oferecer. No fim ele disse está bem. E assim ficou decretado.
Mas no meio disto tudo, fiquei espantado com o cartaz dele. Sem saber ler, nem escrever, como foi ele arranjar maneira de se exprimir com tal clareza? É realmente a primeira coisa escrita por ele. Sabia escrever algumas palavras (mãe, pai, joão e pouco mais), mas de cor, sem compreender a lógica da formação das palavras. Caso para pensar que a necessidade faz o engenho. A verdade é que deu para entender o ultimato.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

adeus às palmeiras





anda aí um bicharoco que nos está a roubar as palmeiras. diz o jornal que é um escaravelho que veio da Ásia, que já matou centenas de palmeiras no algarve, e dezenas em lisboa e que, ao que parece, sem remédio à vista, se prepara para nos palmar as que nos restam. raio do bicho! as larvas comem o coração da árvore, reproduzem-se a uma velocidade espantosa, com cada fêmea a pôr cá fora cem ou mais por semana destes devoradores. não há dinheiro para os tratamentos preventivos, diz o jardim botânico, que se limita ao que pode, tentando salvar as espécies mais raras.
e eu ando raladíssimo com a sorte da nossa palmeira, que dá alma ao nosso largo, que quase serve de emblema ao pequeno mundo onde me mexo. custa-me imaginar o mundo sem esta palmeira.

perde-se a Graça




fechou A Morgadinha da Graça. anunciava-se como mercearia fina, se calhar para se distinguir, quando apareceu, há muito tempo certamente, dos lugares que apenas vendiam frutas e verduras. ainda apanhei o dono no tempo em que se desfazia em idas e vindas do balcão para a caixa, para a rua, a descarregar coisas de uma furgoneta, que dizia virem de uma quinta que "lá tinha". todo pimpão, irascível, miudinho, orgulhoso do que tinha para vender. mais tarde ao passar ouvia-o humilde e rasteiro a dizer compre-me alguma coisinha por favor. arrastou-se uns meses. agora fechou.
ao lado fechou também uma loja, velha e revelha, uma correaria, talvez, de mil armários de madeira escura, que vendia couros e tudo o que lhes está aparentado: atacadores, ilhós, cintos...
e fechou o velho indiano que vendia tudo e mais alguma coisa, se é que vendia alguma coisa, porque me parecia que a loja era só um pretexto para estar ali a sorrir a quem passava e a espalhar aquela ternura desprendida de quem não espera muito dos outros. depois começou a vender flores. e uns restos de coisas que por lá ficaram: colheres de pau, imagens coloridas de deuses indianos, saris e véus flamejantes, com lantejoulas. agora até a porta está murada. e ao lado a sapataria também cega, com montra e porta lacradas a tijolo e cimento. e ainda a seguir o restaurante quase tasca que faz esquina com a rua do sol à graça. tudo fechado.
uma morte lenta de que nos vamos apercebendo quando os lugares costumados se escusam aos nossos olhos desatentos.