sexta-feira, 5 de março de 2010

A Ilha do João

O João tem uma ilha. Ele e o ursinho, aliás. Tudo acontece naquela ilha. O João acorda e começa a contar o que por lá vai. Vou buscá-lo à escola e no caminho de volta ele vai relatando os casos do dia da ilha, em que ele e o ursinho têm sempre um papel decisivo. Incêndios (sobretudo incêndios, com muitos bombeiros e carros de bombeiros e pessoas a salvar), tempestades, barcos a naufragar... É uma vida atarefadíssima. E que invade todo o quotidiano do joão: as histórias sucedem-se não há nada, nenhum aspecto da nossa vida que escape ao seu reflexo na ilha. Às vezes queixava-se por lá não ter amigos. E aos poucos foi aparecendo outra gente. Primeiro a mãe do Ursinho, Carla de seu nome, que era parecida com a mãe. Vagamente, de uma forma quase só implícita, era também a mulher do joão. Apareceram depois duas irmãs: a Carla e a... Carla. E mais tarde uma vizinha que tomava conta das irmãs de vez em quando: Carla também. As histórias invadiam o nosso quotidiano. A Cereja chegou a preocupar-se: aquelas fantasias não seriam exageradas? Que significavam? Não seria uma fuga ao real? Eu gostava de o ouvir, não alimentava a fantasia, mas não a cortva, nem a desmentia, nek lhe apontava as contradições. Na ilha tudo era bem sucedido, o joão tinha lá tudo o que precisava. As coisas que aqui não tinha, tinha-as lá a dobrar. O que eu fazia, também ele fazia, ele eo ursinho, claro. O que eu tinha, ou comprava, ou lia, ou comia, tudo isso também ele, e o ursinho, sempre, faziam lá. A lha era de certo modo um mundo de compensação das pequenas frustrações ou contrariedades: era o que para todos nós é a fantasia. Mas também o ocupava, e talvez o mundo se complicasse também para ele.
Talvez inspirado numa cantiguinha que eu tinha feito para ele, para o embalar (O João Bandoleiro, em que ele foge a cavalo para a Madeira) a ilha passou a chamar-se a certa altura "Madeira".
Um dia, de manhã, quando a Cereja o foi acordar, ele disse: houve uma trempestade na Madeira e morreram todos. a mãe do ursinho, as irmãs, a amiga, todos.
Ainda hoje não sei porque as coisas se passaram assim. Seria porque começava a tornar-se pesado para ele? Complicado?
Agora, se falava neles era no passado: quando "fazíamos" assim, "era" assim, "fomos" aqui ou ali... Aos poucos pareceu-me que toda a quela gente recomeçou a existir, mas no passado, ou lá, na ilha, na Madeira, mas ele (e o ursinho) aqui. Ia lá às vezes visitá-los. E quando pus na sala um telefone de baquelite, dos antigos, meramente decorativo, que a Lurdes me tinha dado, esse telefone passou a servir para ele telefonar para a Madeira e para falar com eles.
Falava agora na necessidade de construir uma casa nova. Aqui. As nossas conversas no regresso da escola era sobre como construir casas, mobílias, telhados... Um dia uqnaod passámos no alfarrabista, onde por veezs paramos para dizer olá ao sr. Antunes, ele disse-lhe: sr antunes, para o ano vais ter muitos livros? É que eu ando à procura de uma mulher para casar e vou fazer uma casa nova e vou precisar de muitos livros. O Antunes riu-se e disse-lhe que aquilo ia custar muito dinheiro... E que o pai não lho podia dar. Sem me dizer nada, aquilo deve ter ficado a trabalhar-lhe na ideia. Nesse dia foi buscar o mealheiro que tinha no quarto de cima e levou-o para o quarto dele. Daí a dias, disse ao Antunes: já trouxe o mealheiro para baixo e vou começar a juntar dinheiro. Nem eu nem o Antunes percebemos de que estava ele a falar. Só mais tarde relacionei as duas conversas...
Noutro dia, estava a brincar cá em casa com o Rodrigo, foi direito ao telefone e disse: olá, era só para saber se vocês estavm bem e diz à tua mãe que vou arranjar outra mulher e que vou casar com ela. O Rodrigo olhou para mim com uma expressão de puro espanto.
Aos poucos as coisas foram-se diluindo. O Ursinho continua aqui, presente, atento, activo. Também presente em "carne e osso" porque invariavelmente coincide com oursinho de peluche que há muito tempo lhe comprámos no ikea e que se tornou inseparável no dia a dia e nas noites do joão. E fica triste e preocupado, quando se esquece dele em casa ou na escola. É um bom amigo. Mas na Madeira só ficaram todos os outros, mas distantes, "a mãe do ursinho" (mas já não a mulher do joão, ou pelo menos não claramente) e os irmãos e irmãs (muitos, não sei ao certo quantos). Há menos coisas a acontecer lá. Ou ele não está tão virado para lá. E já não é claramente "a Madeira" ou a "ilha". Só se lhe perguntamos onde se passou qualquer coisa que ele conta, só então diz que foi na Madeira, ou na ilha.
Agora, em todas as nossas conversas, é só o Ursinho. Ou "eu e o ursinho" ou "o ursinho". As histórias enfiam-se umas nas outras, no caminho da escola até casa e depois aqui até ao deitar, tudo pode acontecer e sempre ele e oursinho lhe dão resposta. E ainda também ele e o ursinho têm tudo, fazem tudo, a dobrar do que nós temos ou fazemos. Vemos um livro? Ele e o ursinho têm um igual. Matam tigres, caçam leões, têm carros, tractores, carros de bombeiros, constroem casas, apagam incêndios, sei lá. Com farrapos do que vai acontecendo aqui em casa, na escola, de coisas que ouve, de coisas que os colegas dizem ou fazem, ele constrói dia a dia, momento a momento, incansavelmente, um fio interminável de histórias e acontecimentos uns mais fabulosos do que outros. Sempre sem contradições sem inverosimilhança, pelo puro prazer de contar. A maior parte das vezes ouço o que ele vai contando. Às vzes com grande exclamações de surpresa, de admiração, de medo. Que às vezes ele tem de me sossegar: Ó pai, não tenhas medo, que isto é só no faz de conta.


Depois

Quando o joão começou a falar, pouco depois já começava a querer contar as coisas dele. Entarameladas, aos saltos de lógica e no fio da história. E houve um dia, acho que melembro disso, aparaceu a palavra "depois". Foi uma revolução: tudo ganhou sentido, tudo se encadeava – a história começava e depois fazia assim e depois fazia assado e depois disse e depois fez e depois e depois e depois... assim já se podia contar qualquer coisa.
Uma palavra muda tudo.
Ainda hoje me interrogo sobre de onde vêm as coisas que lhe ouço pela primeira vez. Sai-se com um "normalmente" e eu pasmo. Normalmente, as coisaa são assim... Ou, como há dias: "quer dizer" (Eu estava a falar com o ursinho, quer dizer, ele só dizia "eh", porque ainda é pequenino). OU palavras que ele colecciona de coisas que ouve aqui e ali, mas que para mim me soam inesperadas: hoje de manhã a veterinária esteve a "auscultar" todos os cavalos e os potros com um "estetoscópio", assim, pronunciado sílaba a sílaba.
Outras não, porque assisti ao nascimento delas: sela, freio, crina, estribo, arreios e toda a parafernália da cavalariça e dos picadeiros, os nomes dos cavalos e sei lá que mais...
Ou as partes do corpo humano, ou o nome dos animais (mesmo ornitorrinco, mesmo os animais "extintos", que conhece pelas imagens e pelo nome...). Ontem disse à mãe: vais à biblioteca? traz-me livors sobre o corpo humano e sobre coisas para aprender. Ainda tenho muitas coisas para aprender.
Começou a reparar que cada livro traz a imagem dos outros livros "da colecção" e começou a pedi-los. A Cereja "descobriu" o filão das bibliotecas municipais e agora temos andado a sacar sistematicamente livros e dvds, usn atrás dos outros, quatro de vcada vez. E o joão continua voraz a aprender coisas novas, a arrumar o mundo e o universo (sim, poruqe nisto entram já estrelas, planetas, cometas, astronautas, e sei lá que mais). Criado o mundo há que dar um nome às coisas e que as dividir pelos seus mundos e lugares, é uma liçaõ antiga como o mundo.



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