terça-feira, 20 de dezembro de 2011

o mal dos outros



costumo dizer que posso bem com a minha infelicidade, e que é a infelicidade dos outros a que mais me faz sofrer. porque me pesa como uma acusação. porque nunca haverá em mim remédio para ela. e como uma culpa que pesasse sobre mim, ela me rói por dentro, e me deixa indefeso, sem remédio que lhe dê. há quem diga: com o mal dos outros posso eu bem. mas isso só seria verdade se o nosso bem se alimentasse do mal dos outros. e nunca é assim. nunca.



quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

jardim árabe



Decidimos comprar o "Jardim Árabe" do manel costa cabral. Há vários anos que estava cá em casa. mas emprestado... Pouco depois de eu ter vindo morar para aqui ele disse-me que podia ir ao atelier dele escolher um quadro para cá pôr. ficava aqui "em exposição". se alguém o quiser comprar, vende, disse ele. agora que saiu da gulbenkian decidiu dedicar-se a arrumar a obra, talvez a voltar a pintar. um dia destes pediu-me para lhe mandar uma fotografia do quadro e aí eu estremeci. lembrei-me de como ele era precário, de como podia fugir-nos de um dia para o outro, porque alguém o comprasse, ou o manel o quisesse de volta, essas coisas. E compreendi como ele estava já ligado à nossa vida e à nosasa casa, de como nos seria difícil ver aquele vazio na parede.

O quadro é vários quadros, costumo eu dizer quando o apresento aos amigos. conforme a luz do dia vai revelando pormenores e texturas que parecem escondidas sob a imagem imediata. O verde profundo é mais profundo ainda do que parece: lá atrás da folahegm surge aos poucos uma nova folhagem. percebemos aos poucos que o vaso é o menos, que a folhagem é o menos, e que só esse mistério é o mais. é aí que o nosso olhar se perde, depois de se despre
nder dos pormenores à superfície. Gostamos muito dele e decidimos comprá-lo.
Num meile ao manel disse-lhe que consultámos a Sotheby e que o valor do quadro era de pelo menos cinco mil euros. mas que oferecíamos metade, preço de amigo, e mais umas bacalhoadas pelos anos fora. Ele disse que o desejo dele era poder oferecer-nos o quadro, mas que... ficava por mil e quinhentos se eu juntasse "leite creme à bacalhoada". Parecia que estávamos a regatear num bazar marroquino, mas aqui com o comprador a querer subir o preço.
O que não deixava de condizer com o quadro: o manel disse que o tinha pintado em 1989, depois de uma viagem a Marrocos, precisamente, quando visitou os jardins do Yves Saint Laurent em Marraquexe.

No Dia de Reis, que é o aniversário dele e do Eduardo, bela coincidência, vamos retomar uma já tradição de festejar aqui em casa os anos dos dois. Como já paguei a parte em dinheiro, começo nessa altura a pagar a parte em espécie, com uma bacalhoada de todo o tamanho. E leite creme, claro.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

cenas do meu bairro



Namoro de bairro (1)

Vem morar para ao pé de mim, amor

Iremos juntos pela manhã ao mercado

comprar flores, cerejas

um peixe inteiro com suas escamas de luz.



Namoro de bairro (2)

Chegaram as primeiras cerejas

e a mulher que as vende

num cesto, junto ao passeio

parece trazer ainda nos gestos

(ou será nos olhos, no jeito de falar)

o cheiro do campo

o rumor dos pássaros


vi que apreçavas as cerejas

com tua mãe ao lado atenta

cheguei-me a ti

sem te olhar

mas que ouvisses

e disse: gosto.

E quando voltei a passar

do mesmo modo também

acrescentei depois: muito.

Seguravas o saco de cerejas rutilantes

e sem que a tua mãe entendesse

ainda uma vez voltei

para enfim dizer: de ti.


Olhei-te depois de longe

vi que sorrias

e soube assim que tinha passado

escondido

o amor em contrabando.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

a coragem do leãozinho




quando hoje saímos da escola, o joão contou-me que hoje todos os filhotes dele tinham ido apanhar vacinas. E sabes quem se portou melhor? perguntou ele. eu não sabia, claro. o leãozinho, que é o mais novo. Todos tiveram bom (das patas dianteiras) e "mais ou menos" (das patas traseiras), a lontrinha, o pelicano, os ursinhos, todos. mas o leão teve "muito bom" nas duas patas. Deram-lhe um diploma e tudo.
Bem, hoje de manhã o joão tinha ido ao Centro de Saúde apanhar as vacinas dos 5 anos. A Cereja levou-o, mas depois telefonou a dizer que estava atrasado e que ela tinha de ir embora e então eu fui lá ter. O Centro está muito mudado: foi tudo renovado, tem um aspecto impecável, limpo e eficiente. Mas na sala de vacinas agora não tem brinquedos. O joão reparou logo e ficou triste. gostava de ir lá e brincar. pegeui nele ao colo para a enfermeira lhe dar as picas. duas, uma em cada braço. e o joão portou-se como um valente, como um leão, ia eu a dizer. E no fim a enfermeira deu-lhe um diploma a atestar o seu comportamento heróico.
O João estava orgulhoso e disse-me que depois quando chegou à escola tinha ido às outras quatro salas mostar aos meninos todos o seu diploma.
Também aqui, o joão recorreu ao mesmo truque de "dramatizar" a situação para melhor a "digerir". Uma "pica" não é um acidente inocente: é uma intrusão no nosso corpo (e que dói ainda por cima, pouco que seja). E numa idade em que a relação dele com o seu próprio corpo não é coisa claramente definida, estes momentos são coisas sérias.
Noutro registo, digamos, é nesta altura também que ele (e os amigos dele, claro) passam o tempo a falr em cocós e chichis, com muitos risos e brincadeiras. Uma parte é o gozo do interdito, de romper as regras do que parece mal; mas por outro lado não deixa de ser também o interesse por tudo o que está ligado ao corpo e às funções corporais.
Estou convencido que a visita às salas em parte era para poder mostar ao seu novo amigo Vasco (da sala da Sónia) que "também" se tinha portado bem. No fim de semna o Vasco estev cá a brincar com ele e contou-lhe que tinha tomado as vacinas e que se tinha portado muito bem, só tinha chorado um bocadinho. O joão passou depois o tempo a lembrar-nos que tinha de ir às vacinas. Devia trazer aquela fisgada...
O Vasco é um menino que ele conheceu fora da sala, no recreio, penso eu. E tornaram-se amigos. Depois combinaram os dois irem brincar para casa um do outro. E num dia em que os pais estavam na escola eles decidiram apresentar os pais uns aos outros para depois poderem combinar a troca.
Desta vez veio cá o Vasco, noutra ocasião irá o joão a casa dele.
Agora diz: os meus dois grandes amigos são o Vasco e o Jorge (da sala dele)

Um livro para os amigos



andamos a fazer um livro, eu e o joão. começámos por pensar fazer um livrinho para oferecer à tia lurdes. mas depois vinha aí o natal e o novo ano e tal e decidimos que íamos fazer cópias e oferecer aos nossos amigos. eu fazia o texto (já estava feito - é a história dos três cavalinhos que às vezes leio ao joão) e ele fazia os desenhos. disse logo que gostava muito de
desenhar cavalos. depois disse-lhe que também havia um cavaleiro muito rico e um guerreiro e um poeta. e ele ia dizendo que desenhava muito bem cavaleiros. confiança não lhe falta!
diz ele: depois pões lá história de zé lima e
ilustração de joão lima. está bem, disse eu. E a mãe? a mãe podia fazer a capa em pano.
depois de falarmos nisso, pensei que podíamos fazer a capa com os cavalinhos de pano que a cereja fazia.
mas claro a capacidade de concentração do joão é ainda limitada. e o livrinho vai-se fa
zendo ao ritmo de uma página por dia. quando o vou buscar à escola combinamos o que vamos fazer a seguir e eu lá vou empurrando as ilustrações. Como são só umas oito páginas...














TRÊS CAVALINHOS

Havia três cavalinhos,

Três cavalinhos havia

Um andava a galope

O outro seguia a trote

E o terceiro dormia.


Aí vão eles mundo fora

À procura, à procura

Andavam pelos caminhos

Mas que lindos cavalinhos

Mas que grande aventura.



O primeiro cavalinho

Foi para longe guerrear

Fez a paz e fez a guerra

Para ser dono da terra

E sobre todos reinar.


Era grande o seu poder

Rei de toda a nação

Por todos era temido

Por todos obedecido

Mas amado, isso não.


O segundo cavalinho

Partiu a fazer riqueza

Juntou jóias, juntou ouro

Regressou com um tesouro

Casado com uma princesa.


Toda a gente à sua volta

Pedia favores, dinheiro

Era de todos invejado

Sem nunca ter a seu lado

Um amigo verdadeiro.


O terceiro cavalinho

Ao sabor da fantasia

Correu praias, correu montes

Bebeu em todas as fontes

Das terras da alegria


Teve amigos, teve amores

Que tal era o seu viver

De nada era invejoso

Nem rico, nem poderoso

Que não buscava o poder.


Chegou mais longe e mais viu

O cavalinho risonho

Que se dormia sonhava

E sonhando imaginava

Que toda a vida era Sonho.