o tempo esse ladrão
não deixem à solta o tempo
ou sem açaimo
ladra-nos às canelas as garras de lume
fincadas numa palavra
a que já esquecêramos
um amigo uma casa onde morámos
e mal queremos atentar
ver melhor
de nós já só avistamos uma sombra
um vulto que se desfaz ao longe
ou se volta a dizer adeus
do outro lado
eu a bem dizer pouco sei da vida
viver foi para mim durante muito tempo
o hábito de viver
mas ainda assim inquieto
de ouvido à escuta
dos rumores que chegam do quarto
onde o filho dorme
do outro lado
onde se ouvem as conversas
do outro lado
não é que não possa falar de outras coisas
de quando o mundo se abria em dois
como um fruto
e dele nascia o dia
agora irrepetível
mas é de outras coisas que me pedem que fale.
lembranças à varanda
floriram as lembranças
que tenho na varanda
todos agora podem ver da rua
como encolheram com os primeiros frios
e se tornam amenas quase íntimas
com um gesto desprevenido
alguma palavra que se ouça
de alguém ao passar
abrem-se como braços vorazes
ramificam-se pressurosas
e já se vêem as noites sem sono
as conversas confusas com os amigos
noutros tempos
irrompem como folhas inquietas
renovos tenteantes
enquanto a água corre pela memória fora
até me surgirem nos braços
implacáveis como uma criança
não sei se
supondo agora que sou eu que falo
que sou eu o homem que irrompe ileso
do nevoeiro da infância
e o tempo possível
entre a infância e a amarga contabilidade dos dias
passados longe do mar
dos pássaros das conversas das crianças
como um bicho ferido
arrasto-me na terra e no frio
escavo um refúgio na memória
supondo que sou eu
aquele que tão perfeitamente
por mim se faz passar