sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Chá-chá (ou chat-chat ;-)



é uma rajada de vida cá em casa. De manhã, mal acorda, põe-se a miar no terraço a pedir entrada. Depois desanda pela casa fora a acordar quem durma, a desafiar quem está ainda em bons lençóis: mordisca-nos as orelhas, dá-nos patadas na cara (com as garras encokhidas!), morde-nos os dedos dos pés. E corre desabalada – já estava a tratá-lo por "ela", ficou marcado pelo engano inicial – casa fora, ajogar futebol com tudo o que apanha à mão, à pata. Acompanha-nos ao pequeno-almoço, cheira tudo e todos, invade tudo por onde andemos. Até na banheira se meteu outro dia, quando o joão tomava banho. Se acha que lhe ligo pouco, agarra-se às minhas pernas, espera-me à saída de uma porta e "ataca" de surpresa. Procura o joão onde ele ande: atira-se para o peito dele, desafia-o, corre à frente dele. Se estou a cozinhas, instala-se na banca ao meu lado, sem ter medo sequer da água, quando lavo a louça. É uma alegria, o nosso chá-chá. Parece um namorado apaixonado: mal nos vê desata a ronronar, passa o dia a ronronar à nossa volta. Por isso gostamos tanto dele.
E estremeço quando às veezs, olhando-o, olhando toda esta alegria desvairada, me lembro do que me disse a veterinária ("Este gato é uma bomba-relógio! Um dia, por uma qualquer razão, ou sem ela, pode desen
cadear-se a doença". A mesma que em poucos dias levou o Maltez, e que este com uma probabilidade de quase 100% também terá).
Mas agora este gato maluco, este gato desvairado, este gato tão lindo, é uma bomba de alegria.







segunda-feira, 4 de outubro de 2010

"Já sabes como eu sou"

devez em quando o João aparece com expressões novas, que nunca lhe ouvimos e que nem sequer as pode ter aprendido em casa. Claro que as traz da escola, dos amigos ou das auxiliares ou da Marta. Às vezes o contexto escapa-lhe e usa-as a despropósito. Mas percebe-se que ele se apodera daquilo que lhe serve para pôr ordem no seu mundo, para nomear o que vaidescobrindo, para exprimir novas emoções e sentimentos, que também vai descobrindo. Muitas delas, ultimamente, parecem escolhidas para delimitar o seu mundo pessoal, para afirmar a sua individualidade, a personalidade, a sua existência como pessoa independente do resto, de nós. Diz: "Ó pai, por amor de deus, então não vês que..."; diz: "Então tu pensavas que eu ia fazer uma coisa dessas? ou: então pensavas que eu ia agora desenhar isso?" E às vezes: "Já sabes como eu sou...".
Engraçado, mas pode ser coincidência, é que o nome, que ele já sabia desenhar, agora tem um traço a toda a volta, como num mundo só dele, realmente.



Ao mesmo tempo, também o resto das coisas se tornam possivelmente mais individualizadas: ganham existência para além dele. O traço torna-se tb mais definido. e reconhecí
vel: o gato, com as suas quatro patas, os bigodes, as orelhas, a cauda... O Comboio tem carruagens e até os trilhos. O Barco Pirata uma quilha e uma bandeira bem distintos. E até a Lontra (feita no Fluviário de Mora, com os meios de bordo, que lá estão à disposição dos visitantes), só a uma cor, temk um perfil definido, com patas e uma cabeça.
Sente-se o esforço dele para organizar o mundo que o rodeia (ainda tão vário e caótico). E sente-se (vê-se!) também a dificuldade que isso é, os sentimentos contrários, as frustrações, a impaciência...










sexta-feira, 24 de setembro de 2010

até me ia esquecendo....

até me ia esquecendo disto: passou-se muita coisa desde.
as férias no algarve. as férias do joão na gulbenkian (umas chamadas oficinas para crianças, muito criativas, muito giras, com gente entusiasmada e que sabe lidar com os putos. o joão delirou. fez coisas de barro, aprendeu cantigas, fez desenhos...).
morreu o maltez: com uma doença dos gatos (pif) fatal e fulminante. foi um momento difícil de passar. todos choramos. o joão também. e dias depois ainda dizia que tinha saudades do gato. Foi o primeiro encontro dele com a morte. de há algum tempo que falava nisso: coisas de miúdos, aproximações, aprender a dizer o que lhes parece que há a dizer. nas brincadeiras alguém "morria", nos jogos "matavam-se". Coisas vagas, distantes, uma palavra apenas. Agora foi diferente. Viu o Maltez doente, sabia que ia ao veterinário, que ia ser internado num hospital de gatos, que estava muito mal, que sofria muito. Mais tarde era ele a contar aos nossos amigos o que se tinha passado. E a morte era, afinal (era assim que ele "integrava" os acontecimentos, o desfecho) uma narrativa. As coisas tornam-se aceitáveis quando se podem contar, ter uma história, uma sequência. Dizemos isso muitas vezes, quando lamentamos a morte de alguém querido (nem me pude despedir, ou: ainda ontem..., ou...).
A morte do meu pai, passada longe. E mais longe ainda porque a Lurdes, para me poupar, não me informava do real estado dele. do internamento, dos tratamentos, da gravidade. foi um choque, tremendo. de repente perdia o meu interlocutor possível para as coisas que trazemos connosco a vida toda. não é que falássemos delas, mas era de certo modo tranquilizador saber que ele lá estava. e que tudo era possível. basta essa possibilidade, às vezes. E depois a corrida de bruxelas até cá para estar no funeral. e aquela gente toda, gente que não via )alguns) desde a minha infância. primos e tios de longe. e amigos (lembranças só, já) de infãncia. e uma inesperada, recusada, contrariada, alegria destes reencontros. e depois o ritual. e como pensei nesse momento que tais rituais tinham alguma coisa de apaziguador: no meio de tantos sentimentos contraditórios, difíceis de exprimir, da tristeza que nos embota, haver uma sequência de gestos (antigos, consabidos e compartilhados, o "como devem ser as coisas", que tranquiliza quando nãop sabemso que fazer), haver um rito préestabelecido serve-nos de amparo, por mais longe que estejamos do significado que lhe atribuem.
pensei, agora ao ver o joão, que precisamos de uma narrativa, para aceitar, para nos apropriarmos das coisas, das memórias, dos sofrimentos, também.

mas voltando a isto:
o joão voltou para a escolinha da voz do operário. a marta diz que ele está mais maduro (emocionalmente, quer ela dizer). ajuda-a a lidar com os novos alunos, que não conhecem ainda as rotinas da sala, explica-lhes como devem fazer as coisas.
também eu reparo nisso. é quase visível a olho nu o esforço que ele às vezes faz para controlar as emoções. é nisso que está empenhado, parece. é difícil para ele enfrentar as contrariedades, as frustrações, as recusas. e a reacção é (era) sempre à medida de alguém que não está preparado para conciliar, para aceitar meias medidas, dispensar o que acha que é merecido, que lhe é devido (é ainda um pouco o centro do mundo, os outros, o interesee dos outros, ainda não entrou na dança. só na medida em que não o obrigue a abdicar de nada. E é isso que agora se vê (quase em câmara lenta, às vezes) que ele começa a integrar. a aceitar. É difícil abdicar do centro do mundo. e ter de encontrar, afinal, um lugar para si. começa uma idade nova, com isso.

quarta-feira, 31 de março de 2010

para ser mosqueteiro


O João anda entusiasmado com um dvd das aventuras de D'Aratacão e os seus moscãoteiros. Vejo-me agora investido no papel de Filipe, e a Cereja no de Julieta, que imagino serem personagens dos filmes. Por vezes trocamos: sou eu o D'Artacão e ele o Filipe... Quando me calha ser eu o Filipe tenho de o tartar por papá. Por isso procurei uma compromisso: se estiverem outras pessoas por perto não me trata por Filipe. É que não quero que julguem que é esse o meu nome, expliquei. Aceitou.
Hoje de manhã, enquanro eu recolhia a roupa do estendal (pensaei que ia chover, mas afinal...) foi-me fazendo as recomendações que achava necessárias: "Se queres ser moscãoteiro, primeiro tens de ter uma espada; segundo, tens de crescer; terceiro, tens de ter um chapéu; quarto, tens de ter uma capa..." Havia ainda uma quinta condição, mas já não me lembro. Vê-se que é coisa séria. Mais do que a de ser dragão: isso bastou-me enfiar um caixote na cabeça (o que dava aos meus rugidos o eco cavo que convinha) e fugir à frente da espada que ele me apontava. Mas não escapei...
Depois (mas só depois...) fomos para a escola. São férias "escolares" e os meninos passam o dia na brincadeira, no recreio. Hoje o João insistiu em levar a espada (uma tira de plástico, mole e que não magoa). A senhora que lá estava não deixou: podia magoar os outros (mesmo depois de lhe ter mostrado que aquilo dobrava ao menor toque). O João ficou desolado. Chameio-o de lado e disse-lhe que ia esconder a espada "lá em cima" e que quando o fosse buscar íamos espadeirar pela rua fora. Riu-se e achou uma boa ideia. E lá ficou. Aliás, tinha uma missão a cumprir. Ontem, ao jantar, contou-nos que nesse dia tinha "evitado duas lutas". Uma entre a Inês e a Juliana. A Inês Justo?, perguntei, pensando que se tartava da grande amiga dele. Não, essa não tinha ido. Era a Inês. Mas depois a Juliana empurrou-o contra o escorrega e ainda o magoou um bocadinho. Hoje estava disposto a evitar mais lutas, mas não ia deixar que o empurrassem contra o escorrega.

terça-feira, 9 de março de 2010

hienas ao pequeno-almoço

hoje o joão levantou-se muito cedo. ouvi uns passinhos miudinhos e daí a pouco aparece ele: bom dia. e salta para dentro da minha cama. Hoje é um leopardinho. Diz ele: podemos comer hienas ao pequeno-almoço, pai? Eu reponto logo: ó joão, hoje não. não há nenhumas, comeste-as todas ontem. E ele: E então que vamos comer hoje? Eu proponho: uma girafa e duas gazelas. Ele acha bem: "então eu como a girafa e uma gazela e tu a outra, está bem?". Digo que sim. e depois de mais umas macacadas e umas negociações fazemos o plano do dia (se estiver sol, vamos à feira da ladra. se estiver chuva vimos par casa e vamos caçar mais hienas), levantámo-nos e começamos a preparar-nos para ir para a escola. Há uma novidade no largo: um camião que veio retirar um contentor de entulho. O joão tem de assisitir a tudo, claro. Eu vou preparando o peqeuno-almoço, faço a barba, etc e ele sempre à janela. Quer ver tudo "para depois contar tudo à mãe".

segunda-feira, 8 de março de 2010

a vida é um teatro
A Cereja está em Paris. até 5ª feira. Ontem fomos levá-la ao aeroporto. Sem dramas, sem lágrimas, o joão despediu-se dela, tranquilizou-se (voltas na quinta, não é?) e escolheu uma prenda para a mãe lhe trazer. Tínhamos combinado dar a tudo o ar de coisa normal e sem história. Nada de "agora vê se te portas bem, a mãe não está cá, tens de ajudar o pai, etc etc." tudo coisas que transformam o acontecimento, mesmo sem darmos por isso, em qualquer coisa de "dramático". Tudo se passou bem. Acha´mos nós.
Mas no regresso a casa, apesar de tudo, a brincadeira que o joão propôs foi fazermos uma avião, com cadeiras, em que eu era o piloto e ele o passageiro. Fomos duas vezes a Paris. A preocupação central era sempre a mala: onde a pôr para não se perder. Provavelmente por duas razões: a cereja tinha deixado uma mala à solta, um brinquedo que ele logo adoptou. E talvez também por ainda se lembrar da odisseia das nossas malas perdidas na viagem a Turim.
Mas lá no fundo, lá no fundo, também a necessidade de esconjurar medos ou ansiedades com a viagem da mãe.
É uma coisa que ele por vezes faz. Chega a vacsa e pede: vamos brincar à escola. Ele faz de educadora, eu de joão e a mãe de outra menina. E aproveita para se desfazer de sentimentos de dúvida ou outros que possa ter trazido da escola. Uma vez, no início desta escola, em que ele se mostrava renitente em entrar na escola, em que não dominava ainda o novo espaço, nem conhecia os colegas, andou mais de uma semana num estado de grande ansiedade. Um dia brincamos às escolas. Eu fazia de joão e desatei a chorar porque "queria ir para casa, não queria ficar na escola". Ele abraçou-se a mim (no papel de Marta, a educadora) a consolar-me, a dizer que ali gostavam todos dele. Percebemos que as coisas iam correr bem. E assim foi.
Também quando eu tove um qcidente, em que fiquei engasgado e tive de ser socorrido pelo Inem: o joão ficou muito impressionado. E nos dias que se seguiram tivemos de várias vezes representar a cena, fazendo ele o meu papel, às vezes, outras veezs de médico. E creio que desse modo se tranqulizava, revivia a cena, e se desfazia da ansiedade que tudo aquilo lhe tinha causado. Hoje fala disso normalmente.
O teatro como terapia, pode dizer-se. E foi ele que o descobriu. É sempre ele que propõe as sessões e o tema. Espero que isto se mantenha assim por muito tempo. Faz-lhe berm e permite-nos adivinhar o que vai naquela cabecinha.

há prioridades na vida
Com a Cereja em Paris, cabia-me hoje acordar o joão, dar-lhe o pequeno-almoço e levá-lo à escola. Liguei o rádio da casa de banho, fiz barulho a lavar-me e a preparara o pequeno-almoço e ele.... nada. Só quando abri a janela completamente é que acordou. Levei-o ao colo, com ele literalmente colado a mim para a mesa do snack, na cozinha. Levou uma manada de vacas e cavalos com ele, para comerem do prato dele. Pedi-lhe que dissesse quanto queria de papa: ia deitando e ele tinha de dizer stop, quando chegasse. Comeu tudo. Fiquei contente, porque me chateia muito ver desperdiçar comida. Depois tinha de o convencer a "andar depressa" para chegarmos a tempo à escola. Vsetir-se, lavar-se, fazer a mochila (com o estojo para a aula de inglês). Durante o pequeno almoço quis saber como se dizia "tenho um urso" em inglês, Disse-lhe. "Então se eu tiver dois ursos tenho de dizer "I have two bears". Sim. E três, e quatro, e cinco – e lá foi recitando a lição. Depois, ao lavar os dentes lembrou-se que não tinha posto os arreios ao cavalo. Lá tive de ficar à espera que ele encontrasse o freio e as rédeas e enfiasse o cabeçal num dos cavalos. E nada de mostrar impaciência: na vida há prioridades!


sexta-feira, 5 de março de 2010

A Ilha do João

O João tem uma ilha. Ele e o ursinho, aliás. Tudo acontece naquela ilha. O João acorda e começa a contar o que por lá vai. Vou buscá-lo à escola e no caminho de volta ele vai relatando os casos do dia da ilha, em que ele e o ursinho têm sempre um papel decisivo. Incêndios (sobretudo incêndios, com muitos bombeiros e carros de bombeiros e pessoas a salvar), tempestades, barcos a naufragar... É uma vida atarefadíssima. E que invade todo o quotidiano do joão: as histórias sucedem-se não há nada, nenhum aspecto da nossa vida que escape ao seu reflexo na ilha. Às vezes queixava-se por lá não ter amigos. E aos poucos foi aparecendo outra gente. Primeiro a mãe do Ursinho, Carla de seu nome, que era parecida com a mãe. Vagamente, de uma forma quase só implícita, era também a mulher do joão. Apareceram depois duas irmãs: a Carla e a... Carla. E mais tarde uma vizinha que tomava conta das irmãs de vez em quando: Carla também. As histórias invadiam o nosso quotidiano. A Cereja chegou a preocupar-se: aquelas fantasias não seriam exageradas? Que significavam? Não seria uma fuga ao real? Eu gostava de o ouvir, não alimentava a fantasia, mas não a cortva, nem a desmentia, nek lhe apontava as contradições. Na ilha tudo era bem sucedido, o joão tinha lá tudo o que precisava. As coisas que aqui não tinha, tinha-as lá a dobrar. O que eu fazia, também ele fazia, ele eo ursinho, claro. O que eu tinha, ou comprava, ou lia, ou comia, tudo isso também ele, e o ursinho, sempre, faziam lá. A lha era de certo modo um mundo de compensação das pequenas frustrações ou contrariedades: era o que para todos nós é a fantasia. Mas também o ocupava, e talvez o mundo se complicasse também para ele.
Talvez inspirado numa cantiguinha que eu tinha feito para ele, para o embalar (O João Bandoleiro, em que ele foge a cavalo para a Madeira) a ilha passou a chamar-se a certa altura "Madeira".
Um dia, de manhã, quando a Cereja o foi acordar, ele disse: houve uma trempestade na Madeira e morreram todos. a mãe do ursinho, as irmãs, a amiga, todos.
Ainda hoje não sei porque as coisas se passaram assim. Seria porque começava a tornar-se pesado para ele? Complicado?
Agora, se falava neles era no passado: quando "fazíamos" assim, "era" assim, "fomos" aqui ou ali... Aos poucos pareceu-me que toda a quela gente recomeçou a existir, mas no passado, ou lá, na ilha, na Madeira, mas ele (e o ursinho) aqui. Ia lá às vezes visitá-los. E quando pus na sala um telefone de baquelite, dos antigos, meramente decorativo, que a Lurdes me tinha dado, esse telefone passou a servir para ele telefonar para a Madeira e para falar com eles.
Falava agora na necessidade de construir uma casa nova. Aqui. As nossas conversas no regresso da escola era sobre como construir casas, mobílias, telhados... Um dia uqnaod passámos no alfarrabista, onde por veezs paramos para dizer olá ao sr. Antunes, ele disse-lhe: sr antunes, para o ano vais ter muitos livros? É que eu ando à procura de uma mulher para casar e vou fazer uma casa nova e vou precisar de muitos livros. O Antunes riu-se e disse-lhe que aquilo ia custar muito dinheiro... E que o pai não lho podia dar. Sem me dizer nada, aquilo deve ter ficado a trabalhar-lhe na ideia. Nesse dia foi buscar o mealheiro que tinha no quarto de cima e levou-o para o quarto dele. Daí a dias, disse ao Antunes: já trouxe o mealheiro para baixo e vou começar a juntar dinheiro. Nem eu nem o Antunes percebemos de que estava ele a falar. Só mais tarde relacionei as duas conversas...
Noutro dia, estava a brincar cá em casa com o Rodrigo, foi direito ao telefone e disse: olá, era só para saber se vocês estavm bem e diz à tua mãe que vou arranjar outra mulher e que vou casar com ela. O Rodrigo olhou para mim com uma expressão de puro espanto.
Aos poucos as coisas foram-se diluindo. O Ursinho continua aqui, presente, atento, activo. Também presente em "carne e osso" porque invariavelmente coincide com oursinho de peluche que há muito tempo lhe comprámos no ikea e que se tornou inseparável no dia a dia e nas noites do joão. E fica triste e preocupado, quando se esquece dele em casa ou na escola. É um bom amigo. Mas na Madeira só ficaram todos os outros, mas distantes, "a mãe do ursinho" (mas já não a mulher do joão, ou pelo menos não claramente) e os irmãos e irmãs (muitos, não sei ao certo quantos). Há menos coisas a acontecer lá. Ou ele não está tão virado para lá. E já não é claramente "a Madeira" ou a "ilha". Só se lhe perguntamos onde se passou qualquer coisa que ele conta, só então diz que foi na Madeira, ou na ilha.
Agora, em todas as nossas conversas, é só o Ursinho. Ou "eu e o ursinho" ou "o ursinho". As histórias enfiam-se umas nas outras, no caminho da escola até casa e depois aqui até ao deitar, tudo pode acontecer e sempre ele e oursinho lhe dão resposta. E ainda também ele e o ursinho têm tudo, fazem tudo, a dobrar do que nós temos ou fazemos. Vemos um livro? Ele e o ursinho têm um igual. Matam tigres, caçam leões, têm carros, tractores, carros de bombeiros, constroem casas, apagam incêndios, sei lá. Com farrapos do que vai acontecendo aqui em casa, na escola, de coisas que ouve, de coisas que os colegas dizem ou fazem, ele constrói dia a dia, momento a momento, incansavelmente, um fio interminável de histórias e acontecimentos uns mais fabulosos do que outros. Sempre sem contradições sem inverosimilhança, pelo puro prazer de contar. A maior parte das vezes ouço o que ele vai contando. Às vzes com grande exclamações de surpresa, de admiração, de medo. Que às vezes ele tem de me sossegar: Ó pai, não tenhas medo, que isto é só no faz de conta.


Depois

Quando o joão começou a falar, pouco depois já começava a querer contar as coisas dele. Entarameladas, aos saltos de lógica e no fio da história. E houve um dia, acho que melembro disso, aparaceu a palavra "depois". Foi uma revolução: tudo ganhou sentido, tudo se encadeava – a história começava e depois fazia assim e depois fazia assado e depois disse e depois fez e depois e depois e depois... assim já se podia contar qualquer coisa.
Uma palavra muda tudo.
Ainda hoje me interrogo sobre de onde vêm as coisas que lhe ouço pela primeira vez. Sai-se com um "normalmente" e eu pasmo. Normalmente, as coisaa são assim... Ou, como há dias: "quer dizer" (Eu estava a falar com o ursinho, quer dizer, ele só dizia "eh", porque ainda é pequenino). OU palavras que ele colecciona de coisas que ouve aqui e ali, mas que para mim me soam inesperadas: hoje de manhã a veterinária esteve a "auscultar" todos os cavalos e os potros com um "estetoscópio", assim, pronunciado sílaba a sílaba.
Outras não, porque assisti ao nascimento delas: sela, freio, crina, estribo, arreios e toda a parafernália da cavalariça e dos picadeiros, os nomes dos cavalos e sei lá que mais...
Ou as partes do corpo humano, ou o nome dos animais (mesmo ornitorrinco, mesmo os animais "extintos", que conhece pelas imagens e pelo nome...). Ontem disse à mãe: vais à biblioteca? traz-me livors sobre o corpo humano e sobre coisas para aprender. Ainda tenho muitas coisas para aprender.
Começou a reparar que cada livro traz a imagem dos outros livros "da colecção" e começou a pedi-los. A Cereja "descobriu" o filão das bibliotecas municipais e agora temos andado a sacar sistematicamente livros e dvds, usn atrás dos outros, quatro de vcada vez. E o joão continua voraz a aprender coisas novas, a arrumar o mundo e o universo (sim, poruqe nisto entram já estrelas, planetas, cometas, astronautas, e sei lá que mais). Criado o mundo há que dar um nome às coisas e que as dividir pelos seus mundos e lugares, é uma liçaõ antiga como o mundo.