sexta-feira, 24 de setembro de 2010

até me ia esquecendo....

até me ia esquecendo disto: passou-se muita coisa desde.
as férias no algarve. as férias do joão na gulbenkian (umas chamadas oficinas para crianças, muito criativas, muito giras, com gente entusiasmada e que sabe lidar com os putos. o joão delirou. fez coisas de barro, aprendeu cantigas, fez desenhos...).
morreu o maltez: com uma doença dos gatos (pif) fatal e fulminante. foi um momento difícil de passar. todos choramos. o joão também. e dias depois ainda dizia que tinha saudades do gato. Foi o primeiro encontro dele com a morte. de há algum tempo que falava nisso: coisas de miúdos, aproximações, aprender a dizer o que lhes parece que há a dizer. nas brincadeiras alguém "morria", nos jogos "matavam-se". Coisas vagas, distantes, uma palavra apenas. Agora foi diferente. Viu o Maltez doente, sabia que ia ao veterinário, que ia ser internado num hospital de gatos, que estava muito mal, que sofria muito. Mais tarde era ele a contar aos nossos amigos o que se tinha passado. E a morte era, afinal (era assim que ele "integrava" os acontecimentos, o desfecho) uma narrativa. As coisas tornam-se aceitáveis quando se podem contar, ter uma história, uma sequência. Dizemos isso muitas vezes, quando lamentamos a morte de alguém querido (nem me pude despedir, ou: ainda ontem..., ou...).
A morte do meu pai, passada longe. E mais longe ainda porque a Lurdes, para me poupar, não me informava do real estado dele. do internamento, dos tratamentos, da gravidade. foi um choque, tremendo. de repente perdia o meu interlocutor possível para as coisas que trazemos connosco a vida toda. não é que falássemos delas, mas era de certo modo tranquilizador saber que ele lá estava. e que tudo era possível. basta essa possibilidade, às vezes. E depois a corrida de bruxelas até cá para estar no funeral. e aquela gente toda, gente que não via )alguns) desde a minha infância. primos e tios de longe. e amigos (lembranças só, já) de infãncia. e uma inesperada, recusada, contrariada, alegria destes reencontros. e depois o ritual. e como pensei nesse momento que tais rituais tinham alguma coisa de apaziguador: no meio de tantos sentimentos contraditórios, difíceis de exprimir, da tristeza que nos embota, haver uma sequência de gestos (antigos, consabidos e compartilhados, o "como devem ser as coisas", que tranquiliza quando nãop sabemso que fazer), haver um rito préestabelecido serve-nos de amparo, por mais longe que estejamos do significado que lhe atribuem.
pensei, agora ao ver o joão, que precisamos de uma narrativa, para aceitar, para nos apropriarmos das coisas, das memórias, dos sofrimentos, também.

mas voltando a isto:
o joão voltou para a escolinha da voz do operário. a marta diz que ele está mais maduro (emocionalmente, quer ela dizer). ajuda-a a lidar com os novos alunos, que não conhecem ainda as rotinas da sala, explica-lhes como devem fazer as coisas.
também eu reparo nisso. é quase visível a olho nu o esforço que ele às vezes faz para controlar as emoções. é nisso que está empenhado, parece. é difícil para ele enfrentar as contrariedades, as frustrações, as recusas. e a reacção é (era) sempre à medida de alguém que não está preparado para conciliar, para aceitar meias medidas, dispensar o que acha que é merecido, que lhe é devido (é ainda um pouco o centro do mundo, os outros, o interesee dos outros, ainda não entrou na dança. só na medida em que não o obrigue a abdicar de nada. E é isso que agora se vê (quase em câmara lenta, às vezes) que ele começa a integrar. a aceitar. É difícil abdicar do centro do mundo. e ter de encontrar, afinal, um lugar para si. começa uma idade nova, com isso.