terça-feira, 10 de maio de 2011

tradutor traidor



recebi agora mesmo um meile do Tiago (Ahab) com a revisão da tradução da Sukkwand island. Entre várias considerações dizia:

E acho que por ora é tudo. Parabéns pela tradução. O Zé tem um jeitinho muito especial e uma marca autoral muito forte. Eu acho que consigo reconhecer uma tradução sua mesmo não sabendo que a fez.

Não esperei pela demora e mandei-lhe um meile a prometer uma releitura rápida das propostas dele. e também as minhas considerações:

Vou ler, mas à partida concordo com o seu método. e é verdade: o revisor tem forçosamente outro olhar sobre o texto. E ainda bem: o tradutor sofre necessariamente da "simpatia" que lhe impede de ver os próprios erros-deslizes-más escolhas (o que se quiser).
Tenho é medo da tal "marca autoral" e do, tantas vezes tido por elogio, "lê-se muito bem em português". Às vezes desconfio.
Lembro-me de uma vez em que alguém me disse: "gosto muito das tuas traduções, até parece que o autor escreveu em português. Só não gosto da (um livro que eu traduzi). Está um bocadinho... não sei... o português não corre bem". No fundo, tomei aquilo por um elogio: tratava-se de um autor com um estilo esforçado, trabalhado. Não era de um autor que dominasse bem os recursos da sua própria língua. A história avançava um bocado aos solavancos, se assim se pode dizer. Pensei (se calhar levianamente) que o testemunho daquele leitor me absolvia de ter "feito literatura" à custa do pobre americano, que andava longe de tal pecado.

E este é um frequente equívoco sobre as traduções, e sobre as traições da tradução, facilmente aceites por serem tidas por justificadas. Esquece-se que essa "justificação" ºe estranha ao texto original. E que a justificação assenta nas "nossas" razões, as que estão deste lado (e são ignoradas, ou até desconhecidas) pelo lado de onde o texto nos chega. Quando o tradutor se mete a "interpretar", a aclarar, a "alindar", a "pôr em bom português" o que recebe, e tem por ininteligível, ambíguo, canhestro... corre sérios riscos de estar a escrever outro texto. Não que daí venha algum mal ao mundo. Ou que não seja, só por si, um exercício possíve, ou interessante. A não ser que não seja essa a tarefa de que foi encarregado. E, além do mais, pode muito bem ser que o autor tenha querido, naquele caso, por exemplo, ser ambíguo, ou até initeligível...
Lembro-me da Sontag se ter queixado numa das cartas (ou meiles) que trocamos que não gostava nada da tradução francesa do "Amante do Vulcão": a tradutora tinha-se posto a "fazer estilo". Li a tradução e compreendi o que a tautora queria dizer: num livro em que ela usa, deliberadamente, vários registos de escrita (do jornalísitico, ao pastiche de época) a tradutora pôs-se a "melhorar" os nacos que lhe pareciam... menos conseguidos, do ponto de vista "literário", naturalmente. Mas muita gente dirá: destá escrito num francês impecável. Mas que não tem a ver com o exercício que a escritora quis fazer. Mas, sobretudo, a tradutora impediu, desse modo, que os leitores franceses percebessem (e se se quiser julgassem) essa tentativa da autora.
Às vezes, pelo menos nos casos em que me pareça que valerá a pena o esforço de propor ao leitor português tanto quanto possível as mesmas condições de que goza à partida o leitor da língua original, tenho proposto ao editor uma "nota do tradutor" em que possa explicar de certo modo a estratégia seguida, o método usado e as ferramentas utilizadas para "passar a fronteira". Fiz isso no caso do Erri de Luca (outro autor avesso ao "literário"), do Pasolini ("Uma Vida Violenta"), mais que não fosse para permitir ao leitor medir a perda irremediável do uso do dialecto romanesco no original. Não o pude fazer nas traduções do Salinger (porque como se sabe o autor abjurava notas de tradução), com grande pena minha, porque houve opções que tive de fazer e que gostava que o leitor portugu^rs tivesse consciência disso mesmo. Opções que tem a ver com o comércio às vezes necessário entre o texto e o sentido, como no caso de jogos de palavras literalmente intraduzíveis (ou se traduzem as palavras e se perde o sentido, ou vice-versa. E discutível será se o tradutor deverá nesse caso encontrar um jogo equivalente, que não traduz o que lá está mas "dá" o que se pretende. Mal acomparado: não sendo possível traduzir o jogo, usam-se as regras desse jogo para um jogo diferente)
No caso de Sukkwand Island, não sei bem o que decidir. Às vezes temo que, confundindo a mensagem com o mensageiro, digamos assim, se pense que o tradutor (eu) esteja mortinho por sair de detrás das cortinas (onde deveria muito bem deixar-se ficar, dirão) e esteja a pôr-se em bicos de pés para que o oiçam. E não é nada disso. Tanto como a maior parte (é o que eu acho) dos leitores e dos autores de ficção odeio notas do tradutor, notas de rodapé, a "dar informação", a colmatar lacunas, até a "corrigir" o texto original. Não é disso que se trata: o que defendo é, em certos casos, notas do tradutor que expliquem a quem não tomou contacto directo com o original o que se "perdeu na tradução" ou a explicar a estratégia seguida para "minorar" os danos inevitáveis da passagem da fronteira linguística. Para mim, é uma questão de lealdade, só isso. Mas também é certo que ninguém me encomendou o sermão. Também é certo que se pode dizer: faz o que puderes e depois lança o texto à água, que o mesmo é dizer à ventura: ele que se defenda. o leitor maior e vacinado lá estará para julgar. Pode ser que sim...
Mas ia a dizer que com tais dúivdas na gaveta mandei aos Ahab um texto que poderia, se eles assim achassem, ser incluído como uma nota (final), destinada aos leitores mais curiosos, ou rigorosos.
Era assim (porque não sei o que decidirão):

nota do tradutor

Não é obviamente tarefa do tradutor sugerir, e muito menos impor, a sua leitura, sequer “uma” leitura, aos leitores das obras que traduz. Mas por outro lado, dando cumprimento à sua parte no “pacto de lealdade” que tacitamente com eles estabelece, cabe-lhe, na minha opinião, fornecer os elementos que o seu contacto próximo com o original lhe permitiu recolher, de modo a que o leitor – muito embora sabendo que o que lê é a versão portuguesa de um livro escrito noutra língua – tenha uma experiência o mais próxima possível da leitura do original. O que implica desde logo utilizar na tradução as mesmas ferramentas e recursos usados pelo autor, sem procurar eliminar ou atenuar os possíveis efeitos de estranheza do original através da sua reformulação de acordo com normas ou convenções consideradas mais próximas do leitor.

No caso deste livro, o problema poderia pôr-se, dadas as especiais características da escrita por que David Vann optou nesta história. É possível que a leitura deste livro, pelo menos a princípio, seja acompanhada por uma sensação de estranheza e de um certo “desconforto”, que resulta da singular construção da narrativa, das frases longas e “descosidas”, assim como da pontuação utilizada, ou da sua ausência. Este “efeito de perturbação” sentido pelo leitor, ao ser-lhe negado o apoio das convenções das normas de escrita mais frequentes, esbate-se depois à medida que a cadência das frases vai impondo uma espécie de toada interior que se sobrepõe às pausas e ao ritmo que uma pontuação convencional poderia determinar. Ao mesmo tempo, apercebemo-nos que esta escrita é também uma das mais poderosas ferramentas utilizadas pelo autor para criar este universo sufocante, inquietante, que sentimos avançar para um desfecho inevitável que não sabemos ainda qual seja, mas que nos compele a prosseguir.

Além disso, a integração do discurso directo no corpo do texto, sem nenhum dos sinais identificadores da norma (aspas, travessão, etc.), aproxima a narração – feita na primeira parte do ponto de vista de uma das personagens, e de outra na segunda parte – de um longo monólogo, seguindo a corrente de consciência de um virtual narrador. O resultado é um poderoso efeito de experiência vivida, de narração quase autobiográfica, que depois outros elementos nos obrigam a pôr em dúvida, sem nunca definitivamente a pôr de parte.

Importará a este propósito saber que a história aqui traduzida faz parte de um livro (“Legend of a Suicide”) que inclui várias outras histórias e inclusive um “post scriptum” com uma entrevista e uma pequena crónica do autor, intitulada “As armas do meu pai”, onde conta brevemente o suicídio do pai, em circunstâncias coincidentes em vários pontos com a narrativa de “Sukkwand Island”. Por outro lado, as personagens das demais histórias têm pelo menos nomes idênticos aos que surgem aqui, o que poderia confirmar o carácter autobiográfico da narração, se não fosse um curioso “efeito de refracção”, chamemos-lhe assim, em que a imagem surge suficientemente desfocada e desfigurada para que, sem deixar de remeter para essa identidade, não seja possível fazer coincidir as duas “versões” da história. Na realidade, só os nomes, os locais e um ou outro facto central coincidem, deixando patente a recriação do universo de onde partem as várias narrativas. Fica, como resíduo, a ideia de um acontecimento imensamente traumático que a escrita de certo modo “exorciza”, se quisermos aceitar tal dimensão para a escrita de ficção.

Não é indispensável, porém, a leitura das outras histórias para sentirmos a tremenda pulsão de medo e de inquietação que vibra nas páginas de “A Ilha Sukkwand”, um efeito em grande parte decorrente do modo como está escrito: uma pontuação rarefeita que, libertando o texto das pausas convencionais, impõe à narração um ritmo próprio, reforçado pelas frases longas, com um extenso encadeado de elementos quase sempre ligados apenas pela conjunção “e”. A isto acresce um vocabulário elementar, repetitivo, uma ausência total de figuras de estilo e de efeitos retóricos, onde mesmo o recurso a metáforas se pode contar pelos dedos – tudo o que adere e parece reflectir o universo fechado da narrativa, praticamente sem aberturas para o exterior da ilha. A escrita é assim também como que um espelho da natureza, elementar, livre ainda da intervenção do homem civilizado, e onde a vida das personagens se resume praticamente às actividades primordiais da subsistência, comer, dormir, caçar, pescar. Daí a importância de respeitar na versão portuguesa as opções do autor – de estilo, de registo, de vocabulário, de pontuação, inclusive – porque disso depende em grande parte a tensão e a densidade de toda a narrativa.

Digamos então que esta nota, ao procurar expor brevemente a estratégia seguida para aproximar a tradução do original, cumpre uma função semelhante à representação da escala nos mapas geográficos destinada a indicar a distância entre a chamada realidade e a sua figuração.






porcos e maus

acabei ontem "Um passeio no campo", uma história tremenda em que um pacato burocrata, que para apssar as horas vai dar uma volta pelo campo, acaba a ser comido pelos porcos de uma pocilga. Nem sei como me deu para aquilo, mas foi assim que aconteceu. Estou a ver as pessoas que me conhecem tão pouco avesso a tais violências a perguntar-se, a perguntar-me, como tal é possível. E eu sem saber que lhes dizer. Ao pensar nisso, porque também pensei nisso, acho que diria que me baseei numa história que realmente aconteceu. Na GRécia. Ou num país qualquer, mas talvez dos Balcãs, o que lhe daria o seu tanto de distância, sem no entanto pôr as coisas tão longe que deixaria de ser estranho, ou chocante. As pessoas facilmente se predispõem a aceitar, ou a dispensar mais justificações, para tudo o que aocntece em culturas, em sítios, que não conhecem, ou que escondidamente têm por bárbaros, ou gentios, ou sei lá o quê do que ainda restar dos antigos medos, ou muros, ou abjecções. E sossega os espíritos saber que uma coisa aconteceu, Diria, claro, que na história acontecida tal só foi possível por razões que envolvem uma vingança, um assalto, uma refrega. Enfim tudo razões que ainda assim permitem justificar, achar justificada, mesmo que não aceite, a violência de pessoas sobre pessoas. Tranquiliza de certo modo saber que a violência tem alguma coisa de vagamente racional, de motivações que possamos compreender, até sentir, ainda que em grau atenuado. A violência do fanático pode ainda, deste modo, ser compreendida. São outras as nossas verdades, é muito diferente a nossa disposição para a violência em nome dessas (nossas) verdades, mas por aí podemos ainda chegar ao que move a violência do outro. É o que se ouve por aí: sim foi violento, mas também... (e vai-se buscar o que do outro lado pode "justificar" tal resposta). Ou o jogo dos equivalentes (o fundamentalismo islâmico pela inquisição), ou das razões histórias, ou políticas, etc. etc. Mas já vou longe do arrazoado inicial – dizia que é possível que com tais alibis pudesse fazer passar a violência da minha história. Só que aí a violência dos que atiram a tal pacata personagem para a pocilga onde acabará possivelmente por ser devorado (digo possivelmente porque a história o deixa aí semi-incosciente, se calhar sem coragem de ficar até ao fim) é totalmente desprovida de tais razões (não o roubam, ele não os provocou de maneira nenhuma, não se sabe sequer quem são eles, nem o que ali fazem). É realmente tremendo.
E o mais estranho, e estava a pensar nisso, mesmo enquanto escrevia tais enormidades, é que tudo se passava numa tarde ensolarada, aqui no meu terraço, diante de um Tejo luminoso, com o João e o Francisco a brincarem á minha volta. E a interromperem-me com perguntas, e provocações para a brincadeira. Um quadro perfeitamente doméstico, longe de toda aquela violência e abjecção. Logo alguém se lembrará das histórias dos carrascos que ouviam Mozart. E outros irão buscar o seu Freud para me virem com a sublimação, a compensação, o recalcamento, de sei lá quê. E às tantas será mesmo, quem sou eu para os desdizer? Mas penso também às vezes que o que me pode ter levado para ali, ou antes: que o que pode ter trazido aquilo para aqui, é precisamente o que há de irracional, de injustificado, de incoercível, até de inominável em tanta da violência que sobre nós se abate, e que muitas vezes (talvez também para esconjurar essa des-razão) nem sequer é sentida como propriamente violência: se não é possível nomear o causador, a causa, acabamos por considerar o que acontece como inevitável, como parte "da vida", "das coisas, como elas são". E no entanto o que a mim mais me choca em muita dessa violência em que está envolta grande parte da nossa vida, mesmo a mais pacata, a mais burocrática, a mais apagada, é a impossibilidade (ou o sentimento de impossibilidade) de a evitarmos (ou de lhe responder, em certos casos, e ou em nos defendermos, noutros casos). É difícil admitir, mas é assim, que a violência é sempre gratuita, é sempre, de certo modo, irracional. Mas isto só se torna evidente quando se esgotam os nossos meios de a reconduzir às "razões", às motivações, às justificações que conhecemos. Talvez vá nisso a nossa crença na lógica do mundo, e das coisas. Porque sem isso, no fundo é o que nós tememos, tudo seria insuportavelmente absurdo.



Sic transit...


Há dias, estive a falar com o Amadeu, sobre as voltas e reviravoltas em que o João Rodrigues acabou por se meter quando a Porto Editora se meteu tão declaramente na vida dele. Ou ele a meteu. Ou teve de a meter. Enfim, as declinações poderiam prolongar-se, mas fica o facto, o osso, que agora há que roer.

E hoje li num blogue:

"Feira do Livro

Vejo que a Porto Editora comeu o João Rodrigues (Sextante)."
Assim, com a brevidade e a crueza de um epitáfio.
Num meile para o Amadeu, comentei: Só espero que o nosso João consiga ainda dar-lhes muitas indigestões. Mas digo-o, que a minha fé é pouca, só porque gosto muito do João.